24 de out. de 2008

por vezes parecia

Muitas vezes...

por muitas vezes parecia
que ia tudo dando errado
andando sempre lado a lado
sem saber o que fazia

mas o tempo passou, foi embora
levou consigo o que eu não tinha
inclemente por todo um dia
e uma noite inteira, até agora

e de longe veio frio o vento
trazendo o velho esquecido
fazendo do que é novo, vivo,
trazendo alívio ao momento

quando chegar de novo a hora
e não for possível adiar
há apenas mais um lugar
de onde se pode ir embora.

em um canto qualquer do mundo

Em um canto qualquer do mundo...

em um canto qualquer do mundo
em um lugar que ninguém sabe
onde os homens não tem medo
e a vida mais nada vale

trancado em quarto escuro
aprisionado da luz do mundo
sem que nada possa ver
nem brilho que emana
do sol no alvorecer
ou a luz que vem da lua
onde todos possam ver

trancado no escuro
foi lá trancado por você

no fundo escuro de uma cela
preso no chão por duras correntes
foi trancado sem dó meu coração
sentindo a presença de quem é ausente.

Em um canto qualquer do mundo
sento espero, cansado e mudo
que um dia venha e eu possa ver
tudo o que antes tentei esconder

que no dia em que finalmente vi
olhei até enxergar que não era ali
lugares onde tempos atrás
por pouco tempo morri e vivi

louco que sou, um tempo esperei
o tempo passou, mais louco fiquei
tinha tanto tempo que tempo desperdicei
agora já nem tento tanto sabendo que fracassei.

Em um canto qualquer do mundo
me aproximo, mas logo me afasto
sigo em frente sempre sentindo
que o sentido perdeu o rastro.

Obrigado.

Antes do sol nascer eu espero

















Antes do sol nascer eu espero
que tudo o que quero possa chegar

e que quando vier, que venha,
mas que venha por inteiro

que a metade já não basta
independente do que haja.

Antes do sol nascer eu espero
esperando posso chegar

aonde o anjo nasce
e o diabo foi morar

lugar onde os olhos não vêm
o que aqui tinha, não tem por lá
Antes do sol nascer...

Antes do sol nascer eu espero
sentado, olhando pro ar

um dia conseguir descobrir
o que seja um bom jeito de amar

antes do sol nascer eu espero
me desespero tentando entender

o que um dia me disse o amor
pouco antes de me esquecer

indo embora levando consigo
o que comigo não pode ficar

me largando no mundo sofrido
sozinho ainda a lhe amar

antes do sol nascer eu espero
que um dia possa voltar

o anjo com meu amor
para devolver meu coração
ao seu devido lugar.

Antes do sol se por eu espero
desejo mais do que acredito

tentar levar a vida a sério
e te levar sempre comigo

entes do sol se por me desespero
lembrando de tudo que não foi dito

Por Deus! Como eu quero
ver o dia nascer bonito!

Levo essas esperanças, escondidas sempre comigo
trancadas no meu peito escuro, gritando gritos aflitos
de um sonho que não foi feito, carrego esse risco...


...


Antes do sol nascer eu espero
sentir todo esse álcool no meu sangue

espero que a fumaça vá embora
que chegue aquela hora

antes do sol nascer eu quero
que essa noite me ilumine

quero que o dia não termine
antes do sol nascer, eu espero.

14 de out. de 2008

O Engraxate.

Ia andando pela rua. Uma caixa de engraxate debaixo do braço. Seguia triste, melancólico, rumo a alguma rua do centro da cidade. Iria trabalhar até anoitecer. Os poucos trocados que recebesse iriam para seu padrasto. Levava dentro da caixa suas ferramentas, dentro da cabeça suas idéias.

Atravessou um terreno baldio. Todo sujo e cheio de mato. No meio dele uma velha lata de pêssegos. Um pontapé bem dado. Agora, o terreno era um estádio imenso, lotado. A torcida vibrava e gritava seu nome. Ele corria driblava um, outro, o goleiro. Chutava e marcava um gol espetacular. Corria, dava cambalhotas enquanto comemorava. Tropeçou. Caiu no chão. Despencou de volta ao terreno baldio. A lata de pêssegos caída amassada, a caixa de engraxate aos eu lado no chão. Levantou, limpou a terra do rosto e continuo seu caminho.

Chegou ao centro. A praça. Os pombos. As pessoas passando. Se aproximou de um homem que lia um jornal, sentado num banco. Pediu para lhe engraxar os sapatos. O homem olhou para ele. Pensou um pouco e aceitou. Ele começou o serviço. Enquanto trabalhava de vez em quando olhava para cima e lia uma noticia no jornal do homem. “Gelo em Marte”; “Homem morre atacado por cachorro”; “Preso suspeito de forjar suicídio da namorada.”; “ Preço do petróleo dispara”. Acabou o serviço. O homem lhe da uma moeda de um real.

Ele senta um pouco. Relembra das notícias que leu no jornal. Viaja. Está em uma nave espacial, Vê um planeta a frente, branco, coberto degelo. Mexe em alguns botões. A nave pousa. Com um traje espacial ele sai. Caminha. Faz uma bola de neve e chuta. Ela vai longe. De repente surgem soldados-cachorros, com armas de raios. Ele corre, se esconde. Saca sua pistola. Acerta um, outro, mais outro. Esta quase vencendo...

Alguém fala com ele. Um velho. Quer engraxar os sapatos. Rapidamente ele volta a realidade. Abre sua caixa e pega a graxa e a escova. Começa. Esse não está lendo nada. Que pena. Acaba o serviço. O velho da dá uma nota rasgada de um real. Dois reais em meia hora. Quem sabe ele não conseguiria o suficiente para comer alguma coisa aquele dia.

...

Fim de tarde. O movimento nas ruas aumenta rapidamente. Diminui rapidamente. As pessoas passam apressadas, indo para suas casa depois de um dia de serviço. Ele também. Guarda suas coisas. Com a caixa debaixo do braço vai embora.

Chega em casa. Não tem ninguém. No fogão um pouco de arroz e feijão, frios. Ele joga um pouco em uma panela. Esquenta. Coloca um pouco de farinha. Pega um copo de água. É sua janta. Depois de algum tempo chega sua mãe. Mais tarde seu padrasto, meio bêbado. Ele lhe entrega o dinheiro daquele dia, pouco mais de dez reais. O homem acha pouco. Diz que ele roubou, gastou o dinheiro com alguma bobagem. Bate nele. A mãe olha. Só isso. Ele vai para o quarto, machucado. Deita na cama dura. Lembra das noticias que leu aquele dia. Da nave espacial. Dorme. Sonha. Amanhã quem sabe, talvez ele consiga um pouco mais.

A Velha Cega.

A chuva cai. Um carro passa. Outro carro passa. Molha alguém na calçada. Ouve-se palavrões. A chuva cai. Sentada perto da janela, uma velha cega ouve o mundo passar. No seu colo um gato manco. Os olhos opacos da velha. Os olhos amarelos do gato.

Passava assim seus dias. Sozinha em casa, apenas o gato por companhia. De manhã sua filha saia. De noite ela voltava. E a velha sentada perto da janela. Lembrando do tempo em que podia ver. Como era bonita aquela rua. A praça logo em frente. Bem cuidada e florida. As ruas limpas. Mas já fazia muito tempo. Agora, como será que estava a rua, a praça? Gostava de sentar no banco da praça e sentir o perfume das flores. Mas tinha medo de sair sozinha. Não havia ninguém para leva-la até lá. Ninguém para fazer companhia a uma velha cega num fim de tarde. Sua filha ocupada. Seus netos longe.

Ela também, já havia sido muito bonita. A mais bela do bairro. Com que todos os rapazes queriam namorar. Faziam serenatas na sua janela. Pediam-na em namoro a seu pai. O pai, um bom homem, dizia que ela escolheria com quem iria se casar. Ela escolheu. Um rapaz diferente dos outros. Quieto, meio tímido. Estudante de direito. Tiveram três filhos. O mais velho era médico e agora morava longe. Ele tinha dois filhos, que nas férias passavam alguns dias com ela. A mais nova era professora. Tinha uma filha que fazia faculdade em outro estado. A filha do meio havia morrido, junto com seu pai, há dez anos, em um acidente de carro. O mesmo que a havia deixado cega.

Um dia, em que seu filho a estava visitando, convenceu seu neto mais velho a acompanha-la até a praça. Depois de algum tempo sentados, em que ela lhe contou histórias de quando era moça, ela entediado disse que tinha que ir a algum lugar e a deixou lá, sozinha, e foi até a banca da jornais olhar as revistas. Ela ficou sentada. O gato no colo. Depois de algum tempo ouviu alguém se aproximando. Pela voz parecia um garoto, entrando na adolescência. Pediu licença e sentou ao lado dela. O garoto parecia simpático. Ela começou a conversar com ele. Ele respondeu, pareceu interessado. Ela contou suas histórias. Ele ouvia. Ouviu muitas. Durante a tarde toda. Quando a velha começou a sentir que esfriava perguntou as horas ao garoto. Era tarde, e seu neto ainda não havia voltado. Ela começou a se assustar. Estava perto de casa, mas não saberia voltar desacompanhada. O garoto pareceu perceber. Perguntou se ela não queria que ele a acompanha-se. Com um pouco de vergonha aceitou. Disse o número de sua casa. Ela a pegou pelo braço, com cuidado, e a conduziu. Tocou a campainha e esperou até que abrissem a porta. Só depois que ela havia entrado e que foi embora. Sua filha perguntou que era aquele garoto. “Ele pareceu tão simpático e educado.” Ela não sabia. Realmente, ela não havia se apresentado. Apenas escutou, com paciência e atenção as histórias de uma velha. Seu neto, quando chegou em casa, tarde da noite, levou uma bronca e um castigo por ter deixado sua avó na praça.

Aquele dia foi um pouco mais feliz para ela. Uma pequena gentileza. Um momento de atenção que um garoto desconhecido havia tido com uma velha cega. Poder contar histórias, relembra-las, revive-las. Dias que haviam sido mais felizes. Para a maioria das pessoas pode parecer pouco, mas quando o que se tem são só as lembranças, poder lembra-las e compartilha-las adquire um valor imenso.

Esperava um dia poder reencontrar aquele garoto. Agradecer-lhe. Saber seu nome.

9 de out. de 2008

O Garoto.

Todo dia era a mesma coisa. Sete horas da manhã. Sua mãe abria a porta do quarto. Dizia: “acorda, já está na hora, você vai se atrasar!” Mas ele já estava acordado. Há muito tempo. Isso quando dormia. Quando não passava a noite inteira em claro, pensando. Pensar, ele fazia muito aquilo. Mais do que a maioria das pessoas que ele conhecia. Ele pensava, se lembrava das coisas, de todas as coisas. Via padrões, ligações. Via coisas que ninguém mais via. Quando era mais novo ele tentava contar aos outros, aos adultos, essas coisas. Ninguém acreditava nele. Era apenas uma criança! O que ele poderia saber que um adulto já não soubesse? Como ele insistia, teimava em achar que estava certo o levaram a um médico. Fizeram muitos exames. O médico descobriu que ele era um gênio, isso foram obrigados a admitir. Muito mais inteligente do que a média da sua idade, na verdade mais inteligente do que a maioria dos adultos, mas isso era mais difícil deles admitirem. Agora, com onze anos, já não contava nada a ninguém. Ia a escola. Sabia que não precisava, tudo o que os professores ensinavam ele já sabia, quase sempre muito melhor do que o professor, mas tentava se comportar como eles esperavam que ele se comportasse. Não fazia nada estranho. Fingia se interessar. As vezes tirava uma nota um pouco menor, só para parecer normal.

Um pouco contrariado ele se levantou. Acendeu o abajur. Se sentou na beirada da cama e ficou olhando para as paredes. Todas cobertas por recortes de jornais, fotos, alguns posters. Reportagens sobre acidentes. Suicídios. Sua mãe não gostava daquelas reportagens falando sobre pessoas mortas, sobre suicidas, mas ele conseguiu convence-la de que não era nada de mais. Disse que queria ser policial, como seu pai. Ela acreditou. Mas havia algo a mais naquelas reportagens, algo que ninguém conseguia enxergar. Um padrão que apenas ele via. Ainda não havia compreendido o porque. Faltava alguma peça. Algo que não aparecia nos jornais. Um detalhe. Ele havia decidido. Iria descobrir.

A mãe voltou. Tornou a chamar. “Já levantei”, ele respondeu. “Ótimo, então vem tomar café ou você vai se atrasar”. Foi. O que mais poderia fazer? Tomou o café. Trocou de roupa. Saiu. Ia andando até a escola, eram apenas dois quarteirões. Sua irmã ia com a mãe para o trabalho, para a creche.

Enquanto andava ia pensando. Tentando ver as os padrões, as conexões que faltavam. Carregava na mochila dois cadernos. Um onde ele fingia anotar a matéria que os professores passavam. O outro, esse era importante para ele. O diário, onde ele anotava todo o que descobria, onde carregava recortes dos casos que pareciam mais importantes, que preenchiam as maiores brechas.

Conforme ia andando para a escola encontrava com alguns colegas de turma. Não tinha amigos. Não sentia que tivesse ou que precisasse realmente de um. Mas a maioria dos colegas gostavam dele, as meninas principalmente. Ficavam dando risinhos e apontando quando ele passava no corredor. Ele não se importava. Se alguém parasse para conversar ele respondia. Poderia pensar e conversar ao mesmo tempo. Para ele era fácil. Apenas duas pessoas, que ele conhecia desde pequeno, que moravam na mesma rua que ele. Um casal de irmãos. Normalmente iam andado juntos para a escola. Conversando. Eram os únicos que sabiam que ele era um gênio. Gostava deles. Até onde ele era capaz de gostar de alguém. Eram os únicos que sabiam, um pouco mais, das coisas que ele pensava. Eram jovens, não tinham tantos preconceitos. Conseguiam entender que ele realmente via as coisas que dizia.

Chegaram no portão da escola faltando cinco minutos para o horário de entrada. Ele foi até a banca de jornal. Os dois irmãos o acompanharam. Comprou um jornal e o folheou. Leu na verdade. Quando chegou no meio do jornal parou. Sorriu. Havia encontrado. Mais uma peça. Uma matéria curta. Uma mulher havia sido encontrada morta, caída em um calçada no centro da cidade. Aparentemente havia pulado do prédio. Havia com ela um envelope, lacrado, endereçado a um homem que não foi identificado. Era aquilo. A peça que faltava.

O sinal bateu. Ele guardou o jornal na mochila e entrou na escola. Os amigos do lado. Haviam achado estranho vê-lo sorrir. Ele quase nunca sorria, não de verdade, não como havia sorrido agora. Ele devia ter encontrado mais alguma peça do seu mistério. Sabiam que não contaria nada, não na escola. Entraram na sala e se sentaram. Logo o professor entrou, deu bom dia aos alunos e começou a passar a matéria no quadro. Seria mais um longo dia.

8 de out. de 2008

A Cidade e o Homem.

Sentado no alto do prédio, dez andares acima da rua, ele olhava as pessoas que passavam. Pessoas estranhas. Lá de cima pareciam formigas. Trabalhando. Trafegando sem por que. Sem motivos. Quantas daquelas pessoas poderiam reparar em um homem sentado no alto de um prédio. Ele pensava nessas coisas. Em muitas outras também. Ele se parecia com um homem. Mas sabia que não era um. Quantos homens estariam naquele lugar. Se ele quisesse poderia pular. Cair lá do alto. Provavelmente daria muito trabalho a algumas daquelas pessoas que passavam pela rua. Um policial que teria que fazer a ocorrência. Um médico ou qualquer outro que fosse chamado para tentar salva-lo. Tarefa inútil, ele pensava. Daquela altura seria inútil. O pessoal da limpeza urbana. Será que eles teriam que limpar o seu sangue do chão. Suas tripas. Seu cérebro. Pelo menos ele achava que tinha um, embora as vezes sem muita certeza. Poderia viver sem um? Ele pensava. Provavelmente não. Não viver de verdade. Andar por ai. Fazer amigos. Conversar. Não que ele fizesse essas coisas, mas pensava nelas. Poderia faze-las se quisesse, ele pensava.

Pular. Melhor não. Hoje não. Quem sabe um dia. Era uma dúvida que o atormentava. Será que teria coragem de pular? Talvez. Quem sabe um dia, mas não hoje. Melhor não, pensou.

Lá do alto via o horizonte da cidade, acinzentado, turvo. Diferente daquele que ele via há muitos anos, quando morava no campo. Lá também via o mundo do alto, sozinho. Mas lá era diferente. Do alto do morro mais alto. Não haviam pessoas, não tantas, passando. Uma vaca ou um cavalo. Ele via o rio que ia pra longe. Afluía até outro. Esse outro por acaso passava por aquela cidade. Será que eram as mesmas águas. Águas onde ele tomava banho quando criança. Provavelmente não. Lá, na cidade, as águas do rio não eram claras, transparentes. Não haviam peixes naquela rio. Ele nunca havia visto ninguém pescando. O horizonte. Tão diferente. No campo ele via tão longe. As montanhas, as serras. Tinham um tom azul, era estranho aquele azul. Vez ou outra um avião passava. Na cidade era a todo momento, grandes barulhentos, ele pensava. Passava a tarde pensando, sentado no alto do prédio. Vendo a cidade, as rua, os cruzamentos. As vezes um acidente. Um ladrão que roubava uma bolsa e saia correndo. Ninguém parava para ajudar e o ladrão fugia. Depois de muito tempo aparecia um policial.

Ele lá em cima. Ninguém o via, ninguém tinha tempo de olhar pra cima. Todos tão apressados, ele pensava. Mas ele olhava para cima, mesmo já estando tão alto ainda havia o que olhar. No fim da tarde, quando o movimento das ruas diminuía e o sol ia se pondo ele olhava para cima. Via as estrela. Ele gostava do olhar para elas, mas lá, na cidade elas eram diferentes. Não tinham foco. No campo, como era bonito olhar para o céu. Na cidade haviam muitas luzes, elas espantavam as estrelas.

Uma vez ele ouviu dizer que uma moeda de dez centavos, que se ela caísse de muito alto, e acertasse a cabeça de alguém, a pessoa morreria. Uma vida por dez centavos. Coisas estranha. Uma vez ele jogou uma moeda. Ninguém morreu. Melhor assim, pensou. Apenas ficou dez centavos mais pobre.

Sentado lá em cima passava horas. Sozinho. Não se importava. Até gostava. Não sentia fome, e se sentisse poderia descer e comer algo. Não sentia frio. Se sentisse poderia buscar um casaco, mas não sentia essas coisas. Apenas ficava lá sentado. As vezes se imaginava como uma gárgula, daquelas que ele via no livros, que ficavam no alto das igrejas. Duras, de pedra. Mas ele não era de pedra, pelo menos pensava que não. Apenas os pássaros lhe faziam companhia, mesmo assim apenas de vez em quando. Ele não tinha muito a oferecer a um pássaro. Não tinha milho, pipoca ou qualquer outra coisa que um pássaro pudesse querer.

Passava assim suas tardes. Quase todas. Ficava feliz em poder sentar no alto de seu prédio e ver as pessoas passando. Formigas. Ficava pensando, lembrando, planejando. Nem sempre havia sido daquele jeito. Já tinha tido amigos, pessoas com quem conversar. Já havia amado. Um dia, ele não sabia, não entendia, ela foi embora. Sem razão, sem motivo. Apenas foi. Alguns dias depois ele soube. Ela estava morta. foi achada, jogada no chão. Havia pulado de um prédio. Do décimo andar ele soube. Leu no jornal. Com ele havia uma carta, endereçada à ele. Um dia apareceu um policial na sua porta, lhe entregou a carta. O senhor não vai ler? O policial perguntou. Não. Respondeu. O guarda foi embora, um pouco contrariado. Ele nunca leu a carta. A levava sempre consigo, mas nunca a leu. Nunca abriu o envelope.

Sentado no alto do prédio ele pensava. A carta guardada no bolso. Hoje não. E melhor não, ele pensava.

A Festa.


















“Obrigada”. É uma palavra estranha para se dizer antes de morrer. Pelo menos acho que é. Posso estar errado. É estranho. Aconteceu a tanto tempo. Parece que foi ontem. Quando me chamaram para aquela festa eu não quis ir. Foi um amigo meu. Era amigo do dono da festa. Ele ia sozinho, mas me encontrou na rua e me chamou. Foi em cima da hora. Quase não fui. Por preguiça mesmo. Ele insistiu. Eu fui.

Cheguei lá. Não conhecia ninguém. Já havia visto um ou outro na faculdade. Nunca tinha conversado com ninguém. Meu amigo, cara estranho. Chegamos e ele começo a beber. Eu bebi também. Pouco. Ele ia direto, um como atrás do outro. Várias bebidas diferentes. Em pouco tempo estava caído no sofá. Fiquei encostado num canto. Vendo a festa, os outros conversando. Pareciam se divertir. Riam, bebiam, fumavam, conversavam. Eu encostado num canto. Um lata de cerveja na mão. Uma boa companhia.

Não lembro a hora. Parecia que estava lá a dias. Já estava pensando em largar meu amigo lá, jogado no sofá e ir embora. De repente eu reparei. Do outro lado da sala. Linda! Uma blusa de alça, preta. Calça xadrez. Allstar. O cabelo chanel, encaracolado. Os olhos castanhos. Linda! Fiquei olhando para ela. Por muito tempo. Não sei se ela percebeu. Eu me virei. Olhei pela janela. Pensei: Vou até lá? Olhei para o lugar onde ela estava. Já não estava mais lá. Que pena, pensei. Decidi ir embora. Me virei. Ela estava lá. Do meu lado. Parada. Falou comigo. Sorriu. Conversamos. Depois de algum tempo fomos para a varanda. Ela me beijou! Um beijo bom, gostoso, suave. Sentia o cheiro dela. Por algum motivo, não sei qual, me inebriava. Me deixava tonto. Era perfeito. Os lábios dela. Os meus. Juntos. O corpo dela junto ao meu. Abraçados. Um abraço apertado. Gostoso. Ficamos assim por muito tempo.

Na sala o movimento ia diminuindo. Alguns foram embora. Outros caiam bêbados. Companhia ao meu amigo. Já era tarde. Muito tarde. Olhei para o céu la da varanda. Vi o touro. Em pouco tempo ia amanhecer. Paramos de nos beijar. Conversamos um pouco. Nos beijamos mais. Ficamos assim por algum tempo.

Ela colocou alguma coisa no meu bolso. Um pedaço de papel. Um bilhete. Perguntei o que era. Ela disse que nada, apenas um poema. Pediu que eu o lesse depois. Concordei. Me pediu para buscar um copo de bebida. Fui. Quando comecei a me afastar ela pegou o meu braço. Me beijo forte. Por muito tempo. Se afastou. Disse: “Obrigada.” Apenas isso. Tornou a pedir a bebida. Fui buscar. Quando cheguei na sala ouvi um barulho. Assustador. Olhei para a varanda. Ela não estava la. Ouvi o alarme de um carro na rua. Corri até a sacada. Lá no chão. Dezoito andares abaixo. Ela. Linda! Morta!

É algo estranho de se dizer antes de morrer: “obrigada”. O bilhete. Eu guardo comigo até hoje. Ainda não o li. Guardo a lembrança daquela noite. Uma noite estranha. Passei poucas horas com ela. Não sei explicar o por que. Sinto saudades. Muitas vezes, a noite, penso nela. Nas coisas que conversamos. No cheiro. No beijo. Quando vou a uma festa. Coisa rara agora. Me encosto num canto e fico lembrando. Olhando. procurando por ela. Sei que é inútil. Quem sabe um dia. Talvez eu possa entender o que aconteceu naquela noite. Talvez ela fosse um anjo. Um anjo de asas tortas, que não conseguiu voar...