19 de jan. de 2013

O Velho.


O carro seguia pela noite. Uma estrada deserta, esburacada e cheia de curvas. Cercada pela mata. O Céu negro, ameaçador, sem estrelas. Prometendo desabar a qualquer momento. Dentro do carro um casal. Ele dirigindo, apreensivo. Ela nervosa, tentando sintonizar o rádio. Tinha certeza de que estavam perdidos. Ele nunca ia admitir. Era melhor não discutir. Não agora.


Chegaram a um ponto onde a mata se abria um pouco mais. A frente uma pequena casa, com as luzes acesas. Ela sugeriu que parassem para perguntar onde estavam. A contragosto ele aceitou. Não queria admitir. Sabia que estavam perdidos.

Ele parou o carro em frente a casa. Ficava sobre um pequeno barranco. Pequena, paredes de tijolo, sem reboco, teto de sapé, porta e as janelas de madeira. Podia-se ver uma luz fraca escapando pelas frestas da casa. Ela ficou no carro enquanto ele tentaria chamar quem quer que morasse lá.

Com uma lanterna na mão subiu a escada esculpida no barranco. Foi até a porta e bateu de leve, três vezes. Esperou um pouco. Ninguém respondeu. Tornou a bater. Ouviu sons dentro da casa. A porta sendo destrancada. Ele se afastou um passo. Um Velho, curvado e enrugado, segurando um lampião a querosene abriu a porta. Perguntou quem era e o que queria. O rapaz explicou sua situação. O Velho contou onde estavam, realmente perdidos, a algumas horas da estrada que deveriam pegar. Como logo começaria a chover ele disse ao jovem que esperasse amanhecer para partir. Seria muito perigoso dirigir por aquela estrada com chuva à noite. O rapaz aceitou, voltou até o carro e chamou a mulher. Contou para ela o que havia acontecido. Um pouco contrariada ela aceitou. Imaginou que era melhor ouvir o Velho. Além disso, se ele era como seu marido havia descrito, não deveria haver perigo em passar a noite na sua casa.

Eles entraram e o Velho fechou a porta atrás deles. A casa era muito pequena. Tinha apenas um cômodo. Quarto-sala-cozinha. O banheiro devia ser no quintal. Num canto, um fogão a lenha, ainda com um toco de madeira em brasa. Uma mesa quase caindo. Algumas panelas penduradas. No outro canto uma rede. Um baú. Um oratório sobre uma banqueta de três pernas. Parecia prestes a cair. Algumas outras coisas espalhadas. Encostadas nas paredes. Uma velha espingarda pendurada sobre a porta. Um facão com a lâmina muito grande e enferrujada pendurado ao lado da janela.

O Velho abriu o baú. De dentro dele tirou duas redes que pendurou. Foi até o fogão, colocou mais duas achas de lenha a começou a atiçar o fogo. Pegou uma velha chaleira, a encheu com água de uma moringa e pôs para ferver. O casal, parado à porta, olhava o Velho. A moça disse: “o senhor não precisa se preocupar, nós não estamos com fome.” O Velho pareceu não ouvir. Preparou o café e serviu os dois. Acharam melhor aceitar. Lá fora a chuva começava a cair.

Se sentaram e beberam o café. Em silêncio. Depois de algum tempo o Velho falou. Não olhava para eles enquanto falava. Olhava para o baú. O rapaz reparou sobre a sua tampa algo que parecia um porta retrato, virado com a fotografia pra baixo. Era pra lá que o Velho olhava. “É estranho. É. Aparecer alguém por aqui. Fazia muito tempo. É muito tempo. Tanto tempo...” O Velho disse. A moça ficou um pouco incomodada com aquilo. Era estranho vê-lo falando só. Achou melhor tentar conversar. “O senhor vive aqui a muito tempo?” Ela perguntou. O Velho olhou para ela. Olhou fundo. Ela viu que ele tinha olhos azuis, muito claros. O rosto enrugado, muito enrugado, com uma cicatriz no lado direito, da maçã até o queixo. “Sim, muito tempo. Não sempre. Já morei em outros lugares. Nem sempre vivi sozinho... Faz muito tempo. Quase trinta anos. É ela seria mais velha do que você.” Ele respondeu. “Quem?” Ela perguntou. O Velho não respondeu. Ficou parado, olhando para o porta-retrato. Por muito tempo. O casal se olhava constrangido. O Velho se levantou. Foi até o baú e pegou o porta retrato. Não olhou para a foto. O entregou para a moça. Era um retrato antigo, em preto e branco. Meio desbotado. Nele apareciam quatro pessoas. Uma mulher muito bonita, segurando um bebê no colo. Uma garotinha, também muito bonita, muito parecida com a mulher, que não deveria ter nem seis anos. Um homem, alto e forte. Os olhos brilhantes. Eram iguais. Os olhos do homem e da garotinha.

“Já faz muito tempo.” Disse o Velho. E com o silêncio, continuou: “Nunca contei essa história a ninguém, em muito anos. Agora, estou morrendo. Finalmente estou morrendo. Duvido que volte a ver outras pessoas, depois que vocês tiverem partido... Mas ai... Nesse retrato. Olhem para ele. Ai está o meu tesouro. Tudo que eu já tive na vida. O que me foi tirado. Essa era a minha família. Minha esposa. Minha filha. Meu filhinho... Como era bonita, a minha esposa. A mulher mais linda da região. Filha do velho coronel. Era falido o velho. Mantinha a pose, mas era falido. Queria casar a filha com algum coronelinho para tentar pegar o dote e pagar suas dividas. Não conseguiu... Passei um dia pela fazenda dele com uma tropa. Já caia aos pedaços a casa. Vi lá no quintal, a filha mais nova do coronel, ordenhando uma vaquinha magra. Como era bonita! Na hora que botei os olhos nela eu decidi, com aquela mulher eu ia me casar. Continuei com a tropa, assim que entreguei o gado larguei comitiva. Voltei a fazenda e me ofereci como peão. Pedi só uma casa pra morar e um pedaço de terra pra fazer um horta. Num precisava de salário. Bastava poder olhar pra ela todo dia. Fiquei lá um ano. Conversava com ela todo dia. Um dia criei coragem, pedi ela em casamento. Claro que o pai não aceitou, mas ela sim. Ela disse que me amava. O velho, homem maldito, disse que Já tinha prometido a filha em casamento pra um coronel, que diziam o mais poderoso do lugar. Conversamos. Decidimos fugir dali. A gente ia pra longe. Pra terra onde eu tinha nascido. Saímos numa noite de lua nova. Uma semana antes do casamento dela com o tal prometido. Meu cavalo era bom. Ninguém naqueles lados sabia de onde eu tinha vindo. Onde eu morava. Escapamos. Depois de duas semanas tava-mos casados. Lá na minha terra. Vivemos cinco anos lá. Em paz. Nasceu minha filhinha. Depois meu filho. Tudo tava bem. Só, as vezes, era estranho... De noite ela costumava ficar lá no quintal, olhando pro céu. Não sei o que ela via. Ficava horas. Até que eu chamava pra entrar. Mesmo na época do frio. Parecia que ela não tinha frio, nem fome. Isso num era problema. A gente era feliz lá. Muito feliz.

Uma noite ouvi os cachorros latindo. Peguei a espingarda. Aquela mesma que esta ali, na porta. Fui lá fora ver o que era. Quando sai de casa me acertaram um tiro na perna. Cai no chão. Meia dúzia de capangas. Todos do tal coronel que queria casar com a minha mulher. Ele também tava lá. Olhando de longe, o covarde. Um dos capangas desceu do cavalo e entrou na minha casa. Tente ir lá, mas outro me segurou. Eu machucado na perna não consegui brigar com ele. Daqui a pouco o maldito saiu da casa, carregando minha esposa no ombro, amarrada como se fosse um porco do mato! Derrubei o cabra que me segurava e tentei correr. Outro jogou o cavalo em cima de mim e me acertou com o facão no rosto. Cai, os olho turvo. O sangue escorrendo pelo queixo. Ouvi o grito da minha filhinha, chamando a mãe de dentro de casa. O maldito do coronel. Mandou trancar a porta. Pegou uma tocha e jogou na casa. Eu vi. Eu ouvi, os grito da minha filhinha. Do meu filhinho. Meus filhinhos dentro da casa. Minha mulher gritava desesperada. Pedia pela vida dos nossos filhos. Os homens rindo. Correndo com os cavalos em volta de mim. Quando o fogo acabou o maldito chegou perto. Pegou a minha espingarda. Deu três tiros no meu peito. Fiquei caído no chão. O sangue. As lágrimas. Eles foram embora. Me largaram lá, meio morto. Nem me matar eles puderam. Pra fazer eu sofrer mais. Longe eu ainda ouvia o choro da minha mulher. Os gritos das minhas crianças.

Mas eu não morri. Acordei dias depois num hospital. Um compadre meu, padrinho da minha menina, tinha ouvido os tiros e foi ver. Quando ele chegou já era tarde. Ele conseguiu ma salvar. Me carregou até a cidade. Contou que minha mulher também tinha morrido. No meio do caminho pra fazenda do coronel. Conseguiu pegar uma arma e deu um tiro na própria cabeça. Eu tinha tudo. Agora tinham me tirado tudo. Tudo que eu tinha era minha espingarda e sete balas na cartucheira. Uma pra cada maldito que tinha matado minha família.